quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Chaira

Iluminado apenas pelo abajur, estava sentado ao lado da cama. Uma poltrona cor de rosa, feita pra alguém com pernas bem mais curtas que as dele, ornava com todo o resto da decoração. Enquanto observava a filha dormir, lembrava-se de si mesmo em roupas respingadas de tinta Pink, caprichosamente preparando o quarto para a chegada da primogênita. Já eram passados cinco anos agora e o amor por aquele pedaço de gente só havia aumentado ainda mais.

Ela tinha muito da mãe. A começar pelos olhos, cor de mel, altivos e curiosos. O tipo de criança que, se não mostrar a ela como funciona, vai descobrir por si mesma, e que, depois de desvendado o mistério, desinteressa-se logo e procura por algo mais desafiador. Nunca quebrara um brinquedo, mas também jamais brincara com um por mais de uma semana. Afinal, tinha uma casa e quintal inteiros para explorar.

Quem a via assim, longe em sonhos, não imaginava quão esperta e sensível era. Já havia percebido, antes mesmo dele, a mudança no comportamento da mãe. “Mamãe está cheirosa” , dizia, “Mamãe está bonita”. Chegou mesmo a se queixar ao pai uma vez “Mamãe não brinca mais muito comigo”. Talvez, se a tivesse ouvido, suas roupas não estariam manchadas de sangue agora. Talvez não tivesse deixado chegar a esse ponto e então doeria menos. Talvez.


Quando decidiu procurar um detetive para investigar a esposa não estava certo se era o que devia fazer. Não poderia pedir o conselho de um amigo, esse não é o tipo de coisa que se conta a alguém. Não queria ter a confirmação de suas suspeitas, mas não conseguia mais conviver com a dúvida. Então foi até o escritório no centro da cidade e pagou pelo serviço sujo e eficiente. Não demorou pra que tivesse em mãos as provas da infidelidade da mulher que amava. Naquele dia não voltou pra casa e no dia seguinte não foi trabalhar.

Ao chegar, mais tarde que o habitual, a mulher estava na cozinha guardando as sobras do jantar. Ele pegou uma garrafa d’água na geladeira sem ser indagado pelo atraso ou por suas roupas serem as mesmas do dia anterior. Ela não se importava. Perguntou como tinha sido o dia dela, que definiu como cansativo e disse que já ia subir para dormir. Estava sempre cansada agora.

Ele perguntou onde tinha ido. Ela mentiu. Mesmo que tivesse dito a verdade, não acreditaria em nada que saísse de sua boca. Perguntou o que costumava fazer na semana. Ela foi superficial, parecia mais distante que nunca. Ele disse o nome do amante e perguntou de onde o conhecia. Ela disse não saber daquele nome. Perguntou o porquê da traição. Ela negou e disse que o amava. Ele deitou as fotos prova em cima do balcão. Ela emudeceu.

A casa estava quieta. Só se podia ouvir a respiração dos dois, de pé na cozinha. Ambos ofegantes. Ele observava a esposa. Estava linda como sempre fora. Ainda magra, vestida com camisa e uma saia justa um pouco acima dos joelhos. Cabelos presos, maquiagem leve. Ela tinha um ar jovial que a maternidade não levou. Sem dúvida uma mulher atraente. Pôs-se a imaginar as mãos de outro acariciando aquelas pernas, entrelaçando os dedos por entre os cabelos da nuca e a beijando os lábios com desejo. Imaginou-a gostando disso. Suspirando e sussurrando um nome que não o dele. Roçando a pele desnuda e cravando as unhas em êxtase nas costas de outro homem.

Ele ouvia pensamentos e ruídos dentro de sua cabeça. Todos rápidos, simultâneos e ininteligíveis. Podia sentir todo o corpo vibrar em ira, como jamais antes. Era como se pudesse sentir o sangue correr e ebulir dentro de suas veias. E contrastando com toda a algazarra dentro dele, ela seguia muda. E sua inércia e palidez o enfureciam ainda mais.

Estendeu o braço a fim de alcançar o faqueiro em cima do balcão. Viu-a recuar e desculpar-se repetidas vezes, dando para trás cada passo que ele dava para frente. Implorando seu perdão. Ao parar num canto do cômodo, ainda não conseguia ver arrependimento em seus olhos. Era apenas medo. Como um animal pequeno, acuado pelo predador, com a feição em desespero. Nada que o impedisse de empunhar a faca e dar o primeiro golpe, perfurando-lhe a barriga sem resistência, enquanto ouvi-a soltar um grito de dor. Nos cinco golpes seguintes não ouviu ou sentiu nada. Quando parou, notou a manga da camisa, outrora branca, vermelha, embebida em sangue.


Notou que a filha estava encolhida na cama. Levantou-se, atravessou o quarto e pegou mais uma coberta na parte de cima do guarda-roupa. Voltou, cobriu-a e sorriu enquanto lhe acariciava os cabelos escuros, como os dele. Estava de fato mais frio que o costumeiro aquela noite, mas ele estranhamente não sentia ou não se incomodava com isso. Estava anestesiado. Recordou o dia em que trouxe as mulheres de sua vida da maternidade. Como todos os descreviam como uma família radiante. Todo o primeiro mês foi um entra e sai de pessoas da casa. Parentes e amigos com presentes e tudo que pais de primeira viagem precisam para sobreviver àquela experiência.

E o que todas aquelas pessoas diriam se pudessem vê-los agora? Uma série de acusações e discursos moralistas os aguardava. Apontariam para sua garotinha e a olhariam com pena. Mais tarde, lhe encheriam a cabeça com julgamentos sobre seus pais e como ela deveria deixar de amá-los. Plantariam o ódio e a revolta na garota que hoje é tão doce aos olhos do pai. Não poderia confiar ou entregá-la a quem não saberia como agir. Então de súbito, soube o que fazer. Sentou-se na beirada da cama, sorrateiramente para não acordá-la, e beijou-lhe a testa em despedida. Pegou um dos travesseiros que ali estavam e pressionou-o contra o rosto da filha. O manteve assim, impedindo sua respiração, e apertando-lhe o peito para que não se debatesse tanto. Talvez tenha ouvido a menina gritar o pai por socorro uma vez, não tinha certeza.

Feito, ajeitou a garota na cama e cobriu-a de novo, como se repousasse. Apagou o abajur, deixou o quarto e fechou a porta. Percorreu lentamente o corredor até o quarto do casal. Entrou, acendeu as luzes e trancou a porta. Caminhou até o banheiro e parou em frente a pia, encarando-se no espelho. Estava exausto. Parecia vinte anos mais velho. As rugas estavam mais marcadas, os olhos injetados e o rosto escurecido pela barba por fazer. Abriu o armário, pegou a navalha e testou o fio de corte no polegar. Estava bem afiado. Fechou a porta do armário, olhou fixamente para o espelho, elevou ligeiramente o queixo e passou a lâmina num corte horizontal fundo e preciso no pescoço. Enquanto agonizava, caído no chão de mármore, pensou consigo mesmo satisfeito: está tudo bem agora.


quarta-feira, 9 de outubro de 2013

O que preciso dizer

Qualquer coisa entre morrer e estar vivo, é como me sinto. Você vai chamar de clichê ou subjugar minha dor, eu sei como é. Aliás, você sabe bem como é. Você tem seu jeito de entrar na vida das pessoas, fazê-las gostarem de ti e depois abandoná-las sem mais nem menos. Depois, considera todos amantes do drama, fracos e exagerados. Mas você não é muito melhor que qualquer um desses.

Vive seus dias se fazendo de forte, se achando a dona da razão e sob controle das próprias emoções. Só que se esquece de que ninguém manda no coração. Pra se encaixar no seu modo de ver as coisas, você não pode controlar a reação do seu cérebro frente a estímulos externos. Se os cientistas conhecem pouquíssimo do funcionamento de toda essa massa cinzenta aí dentro, por que acha que justo você teria aprendido, com a pouca idade que tem, a manipular todas as respostas da sua?

Talvez doa saber, mas você não é Deus. Não ache que simplesmente por dizer algumas palavras as coisas irão mudar, que o que eu sinto por você vai mudar. Sentimentos são mais complexos que isso. Não podemos desligar e ligar de novo quando for mais conveniente. Quisera eu que fosse assim, daí não precisaríamos passar por isso. Deus, como eu queria poder religar o que sentia por mim.


Você não tem noção de como tenho pensado em você nesses dias. Mesmo não tendo nada físico seu pra guardar, você me assombra. E o que me assusta mais é que eu gosto disso. Eu não quero deixar de pensar em você, não quero te esquecer. Não quero que sua lembrança vá embora como se nunca tivéssemos nos conhecido. Eu não quero perder o que ainda tenho de você. Eu quero ter mais. Eu prefiro viver sabendo que tive você e perdi, do que nunca ter tido você comigo. Mesmo que isso nunca mais se repita, preciso lembrar que um dia fui a razão do seu sorriso.

O que tenho pra dizer mesmo é que tudo que eu mais quero agora é estar com você. E, se você sente ao menos um pouco a minha falta, se em alguma hora do seu dia se lembra do tempo que passamos juntos e se sente bem com isso, me deixe mostrar que posso fazer bem melhor. Sei que não posso fazer você me amar, mas eu sei que posso te fazer feliz. Então me deixe pelo menos tentar. Não haverá um só dia em que não estarei feliz por estar contigo e que eu não me esforce pra te fazer sentir o mesmo. Não me deixe com o peso de saber o que poderia ter sido e não tê-lo vivido.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Carta aberta à amiga que um dia existiu

Por onde será que tem andado? Que rumos sua vida levou? Se vive com os pais ainda na mesma casa, ou casou-se e teve uma filha. Pensei ter te visto há algumas semanas, sentada no último banco da condução. Devia ser mesmo você. Quando passei a catraca e te vi, também olhando pra mim, estremeci surpresa. Susto acho que é a palavra mais adequada.

Faz anos desde a última vez, mas não gosto de me lembrar dela. Se quer saber, gosto de lembrar como éramos antes de toda aquela confusão. Quando nos conhecemos e éramos as mais inteligentes da classe. Sempre queridas pelos professores e com as melhores notas de provas e trabalhos. Você sempre foi mais aplicada, eu tinha sorte. Você ganhava a medalha de melhor aluna, e eu o respeito dos colegas.

Gosto de lembrar-me como, mesmo em escolas diferentes, nos encontrávamos ao menos uma vez por semana pra nos colocar a par dos acontecimentos: o primeiro beijo, o primeiro amor, as descobertas que vinham com isso. Você sempre parecia reluzente ao me contar suas histórias e empolgada em ouvir as minhas. Minhas aventuras de final de semana. Você costumava rir e me rotular de malvada por esnobar uns garotos. Passávamos horas assim.

Trocamos livros, presentes, segredos. Tínhamos até o projeto de morarmos “sozinhas juntas” um dia. Ficávamos mirabolando os futuros dias cheios e divertidos que teríamos na nossa casa. Desde festas às sextas-feiras a namorados passando a noite. O carro que dividiríamos e a carona que daríamos a todos os amigos a caminho da balada. Ia ser incrível e eu mal podia esperar pra viver tudo aquilo, mas sequer chegamos perto.

Eu não sei o que pode ter acontecido e te levado a agir daquela forma comigo. O que, de tão grave, te fez esquecer ou passar por cima de nossa cumplicidade a ponto de me magoar tanto.  Ouvi diversas teorias a respeito, acredite, de parentes e amigos. Especulavam ciúme, inveja, até loucura (e essa era a mais repetida). Eu as ouvia, ponderava e concordava com algumas de tão machucada que estava. Mas no meu íntimo, ainda hoje, renego todas elas. Não consigo acreditar que você seja uma pessoa má.

Quis te dizer isso aquele dia no ônibus. Naqueles segundos que fiquei de pé, observando que não mudara quase nada nesses anos, a não ser por parecer mais madura – e triste. Quis te dizer que não guardo ressentimento ou rancor algum sobre o que passou. Te dar um abraço e perguntar se estava bem. Não queria saber mais seus motivos, já te desculpei há muito tempo, mas queria te ouvir pedir desculpas pra acabarmos logo com tudo isso.

Quis e pensei em fazer tanta coisa e nada fiz. Limitei-me a sentar num dos bancos da frente e relembrar, assustada demais pra andar até o fim do corredor.  Quando enfim tomei coragem para olhar pra trás, você já havia saltado e levado consigo minha esperança de resolução. Fiquei desapontada por um momento e aliviada em seguida. Está bem assim. Tive uma amizade, aprendi muito com ela e vou guardá-la para sempre comigo. Tive a oportunidade de ver que está seguindo sua vida e vou fazer exatamente o mesmo.


Felicidades, de sua amiga de Vicente Amato.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Minha casa


Conservo a pintura da fachada e abafo os barulhos internos, para não perturbar os vizinhos. Ora, um bom isolamento acústico garante a privacidade e mantém as aparências. Ninguém quer ou precisa saber em que pé está a bagunça ali dentro.

Vezenquando, abro a janela para entrar luz e renovar o ar. Tomando cuidado de não as deixar abertas por muito tempo. Alguém pode olhar demais e notar desarranjos. Um porta-retratos virado, papéis amontoados, um dominó desfalcado ou um quebra-cabeça interrompido. Um lençol cobrindo a roupa suja – que um dia hei de lavar.

É preciso estar atenta. Se desconfio de um olhar espichado apresso-me a trancar as janelas. Imagine só que vexame descobrirem que sou falha em administrar o lugar que habito. Melhor não arriscar.

As vidraças estão sempre limpas e o carpete “bem-vindo” aprumado e convidativo. Há também um confortável jogo de cadeiras na varanda, perfeito para jogar conversa fora e nada mais. Ofereço o exterior, aqui dentro só a mim cabe.

Aqui dentro, me expresso entre os limites do concreto. Liberdade medida e autocensurada.

Os móveis ocupam o quarto, souvenires caem na estante em companhia a fotos ignoradas. Música vívida sai do stereo em contraste ao silêncio mórbido do cômodo. Paredes pálidas, escritos empoeirados, ruídos medíocres. Onde outrora havia arte, cantos inexpressivos. Tudo coberto por luz branca e gélida. Um conjunto vazio.

Parece inconcebível, mas depois que se acostuma, é confortável ser assim.



segunda-feira, 29 de abril de 2013

Caribé

Sob o olhar de Kurt Cobain
Meus olhos cortam as sombras
Do meu quarto sem janelas
Do meu livro de novelas
Ao som da Jane Fonda

Sob a luz do sol de março
Gasto a sola do all star preto
Marco as costas em nadador
Sobre pedras e ladrilhos cor
Por anéis, cigarros e segredos

Pela orla do Velho Chico
Sob abraços semi-conhecidos
De semi-leigos da história
Que se dissipam na memória
Aprecio meu tempo perdido

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05 de Março de 2010, Petrolina - PE
Quando eu sabia ainda menos.


Não penso, logo sinto

Tua mão assume minha pele, percorre minhas curvas.  Desarruma-me os cabelos - e o juízo. Redesenha minhas pernas, me aperta a nuca e me puxa pra perto. E me invade. E me une a ti de tal forma que deixamos de ser dois. Lança-se mão de toda racionalidade. Cabeça vazia, peito cheio. Que sou eu se não uma extensão do sentir? Do tato, do desejo, do límbico? Que dirá do reptílico? Te bebo, me tomas. Nos temos. Que queremos mais? Então me sente, me devora e ignora toda regra da boa escrita e bom cidadão. Te prendo em mim e não largo.  - Não penso, logo sinto.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Ele


Eu o amo, sabe? Não, não tem como você saber. Acredito que ninguém mais tenha tido a sorte de chegar ao nível do que sinto hoje. Uns dizem que é dependência, mas eu não ligo. Por que me importaria em depender de ficar do lado de alguém quando, na verdade, estar lá é tudo o que eu quero? Se eu me sinto satisfeita, preenchida, extasiada? Se a presença dele me faz o bem que nenhuma outra coisa pode me fazer? Não existe nada que traga a felicidade que ele me traz.

Quando eu acordo, meu primeiro pensamento é se ele está bem, se dormiu bem, se está de mau ou bom humor. Eu programo minha rotina de modo que coincida com a dele. Para que eu possa almoçar e jantar nos mesmos horários que ele. Me levanto cedo pra que eu possa vê-lo sair e desejar um bom dia. Para que o sinta cada vez mais perto de mim.

Eu demonstro o meu amor o tempo todo. Por cartas, bilhetes, mensagens. Gosto que saiba que tem alguém que se importa muito e que mataria por ele se necessário. Quero que tenha certeza que está sendo amado tanto quanto me ama. Ele não demonstra da mesma forma, claro. Tem seu próprio jeito de me amar, e eu também gosto desse.

Ele é tímido e muito atarefado, não tem muito tempo para essas manifestações de afeto, mas quando o faz é inesquecível. Sempre me emociono. Sou meio boba, sabe? Aliás, com ele estou sempre boba. Ele me faz perder o chão, as palavras, o ar. Quando está por perto, minhas pernas ficam bambas e me sinto longe de todo e qualquer problema, porque estou segura ao seu lado.

Meu amor por ele não se abala. E é eterno, eu sei. Mesmo com os problemas que vimos tendo, nós vamos nos acertar e tudo ficará bem novamente. Por algum motivo, ultimamente ele vem se afastando de mim, mas sei que reverteremos essa nossa crise. Todo casal passa por uma fase difícil, em que não têm certeza se devem realmente ficar juntos. Bom, eu tenho certeza suficiente por nós dois e vou provar que estou certa. Ele só está um pouco confuso, com medo de se envolver mais. Homens têm dessas coisas.

Nós tivemos sim uma discussão. Casais em crise costumam brigar, é normal. Eu me alterei, confesso. Mas ele estava dizendo coisas sem sentido, não havia verdade nas palavras que saiam de sua boca. Acho que estava tão assustado com o que sente que inventou motivos pra fugir de si mesmo. Chegou ao ponto de negar nosso amor.

Você sabe o quanto isso dói? O quanto machuca se entregar tanto a uma pessoa e ela desdenhar teus sentimentos? Você sabe como é ter seu amor rejeitado? Você se sente diminuída, desvalorizada, humilhada. Cria-se uma ferida grande demais para conter. Eu estava sangrando por dentro e enfurecida por ele estar mentindo pra mim daquele modo. Eu tinha de fazê-lo parar, mas não conseguiria sem que o fizesse sentir a mesma dor que eu estava sentindo. Ele precisava saber, entende?

Eu não sei bem como fiz, não me lembro. Estava cega pela mágoa que ele me causou. Mas ao vê-lo desacordado eu voltei a mim. Mais calma pude compreender que era como uma criança, apavorado com tudo o que estava sentindo. Eu já o perdoei. As enfermeiras disseram que irá se recuperar e, quando voltar, eu estarei aqui. Esperando por ele. Meus amigos, e os dele também, estão com muito ciúme e ficam mentindo pra mim, inventando histórias a respeito de nós dois. Eu os perdoo também. Em meu coração não há espaço pra ódio, rancor ou sentimentos ruins, apenas para o amor que sinto por ele. E não vou deixá-lo ir. Nunca.
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Inspirado no filme "A la folie... pas du tou"

sábado, 13 de abril de 2013

irônico, não?



Alguma vez já se sentiu tão feliz a ponto de ter medo? As coisas melhoram instantaneamente e permanecem assim sem que você consiga encontrar um motivo lógico para aquilo ter acontecido. Você tem o mesmo emprego, mesma casa, tem os mesmos amigos, mora na mesma vizinhança de sempre e simplesmente tudo passa a ter um brilho diferente.

Você acorda pela manhã e não se importa do despertador ter cortado a melhor parte do sonho porque sente que, na verdade, a melhor parte você pode começar a fazer agora, na vida real. O céu está mais azul, as pessoas estão mais bonitas e os pets estão encantadores. Você deseja bom dia pro sol porque, subitamente, passou a enxergar beleza na natureza e nos detalhes do seu dia.

Sua rotina não tem mais o peso de sempre, virou prazer. Suas expectativas a respeito do mundo tornaram-se incomparavelmente melhores. É como se o tempo passasse num ritmo diferente e você pudesse notar a graça de estar vivo. Você se sente feliz quase que apenas pelo fato de existir. E, quando se dá conta, percebe o quão assustador isso é.

Digo, não há nada de errado em estar contente, o que parece errado é não saber bem o que te levou a isso. Algo sustenta sua felicidade e não há como impedi-lo de ir porque não se faz ideia do que seja tal coisa.

Não temos medo de ser felizes. Temos medo de perder a felicidade e não conseguir recuperá-la tão cedo ou, quem sabe, nunca mais. Não sabemos quão triste somos até experimentarmos o verdadeiro riso. E agora, cientes de nosso estado de felicidade, como lidar com a possibilidade iminente de perdê-lo?

Você começa a lutar contra um inimigo invisível. Passa estragar dias de sorriso com o receio infundado de ver o que tem ser destruído por algo inexistente. E acaba por desmoroná-lo por si mesmo. Irônico, não? Você não quer que acabe e se torna o próprio causador do fim.

Não, não há reviravolta dessa vez. É isso.

quarta-feira, 27 de março de 2013

Tua ausência


Às vezes chego em casa e subo diretamente ao quarto, achando que te encontrarei deitada, assistindo TV. Abomino minha mente por me pregar tais peças. Como quando o gato derruba a louça na pia e eu imagino que você está de volta à cozinha, preparando sua especialidade e único prato “macarrão ao molho rosa”. Você nunca me contou como consegue deixá-lo dessa cor e eu não te encontro mais lá. Apenas tua ausência é o que se apresenta a mim, todos os dias, em todos os cantos da casa.

Eu nunca entendi bem a definição de vazio. Achava saber quando lia esses novos autores ou ouvia O Livro dos Dias, mas só realmente soube após te perder. Descobri o quanto o vazio preenche o vago e nos deixa sem alternativa, senão encará-lo, dia após dia.

Eu não sabia que o nada podia ser grande assim.


Refaço sempre teu caminho costumeiro, visito teu escritório. Leio teus cadernos de novo e de novo. Tentativas de te sentir perto ou ouvir tua voz novamente. Escuto suas músicas favoritas para me avivar à memória o teu canto descompassado e tua desconstrução da dança. Hoje, de longe, o mais belo show que vi.

À noite, antes de dormir, sucumbo ao peso que sustentei ao longo das horas, inventando uma força que já não existe. Deixo sangrar. O pesar sincero machuca ainda menos que o mais belo riso imposto. Então choro. E, em algum momento antes do sono, em meu inconsciente debilitado, sei que você vem me confortar. E é exatamente isso que me faz levantar pela manhã. Só você pode.

Ignorando a todos os conselhos vindos de quem não entende a minha dor, vivo em tua morte. Porque é tudo o que me deixou, e, se tivesse de viver sem nada teu, então assim eu morreria.

Eles não sabem o que dizem.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Ensaio

Recobrando à minha essência,
talvez tola e débil,
tomo do lápis e papel deixados.
Outrora sagrados,
sutilmente reassumem seu lugar
Pedem licença para voltar
à intimidade que sufoquei.
Ignorando não-sei-quê de mim
que sofri a perda sem notá-lo ir.
Me resigno a deixar fluir
Com um afago terno do retorno tardio.
Lentamente sinto se esvair
O pesar que me assolava peito
Deixa-me, escorre-me entre os dedos
e deita-se dentre essas linhas.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Chá&Café


Pare e observe. Eu não aguento isso. Por que você não enxerga que estou aqui me corroendo? Você sabe, eu me faço de forte. Finjo que não me importo, que não sinto falta de te olhar nos olhos. Mas achei que ficasse meio óbvio que estou desconfortável quando resolvo ouvir música no segundo em que você pega um livro. Quando respondo monossilabicamente todas as suas tentativas de conversa casual. Quando eu corro pra janela só pra ver você descendo a rua depois que bate a porta. Quando imploro muda pra que você coloque um fim nisso tudo. Quando... Até quando? Esses não somos nós.

Quando eu ouço música você levanta e me tira pra dançar. Quando você está fatigado, eu te abraço e digo como tudo vai ficar bem. Quando estou emburrada, você me faz rir dizendo que fico linda ressaltando minhas rugas. Quando você lê, eu te trago café e me recosto no seu ombro. Quando eu chego, você me traz chá e deita comigo no sofá. Quando você sai para o trabalho, eu te levo até a porta e me despeço com um beijo.  Você está vendo? Esses somos nós. Somos melodramáticos e felizes – ou éramos.

Agora somos qualquer coisa muito distante de “felizes”. Você fica sentado na poltrona, tomando um café horrível que você mesmo fez. Pega seu livro de finanças e finge estar absorto, mas eu sei que o franzido na sua testa não é de concentração. Quase posso ouvir seus pensamentos de tão alto que gritam em sua mente. Gostaria de poder ouvir. Sei que está pensando em nós e em como a cada dia o clima fica mais pesado, beirando o insustentável. Nossa descrença é quase palpável pairando no ar. Gostaria mesmo de poder ouvir seus pensamentos. Assim saberia se pra você a solução é consertar ou jogar fora. Adquirir uma nova. Só em pensar me vejo nervosa.

Nervosa. Nervosa define bem o que tenho sido ultimamente. Estou sempre a flor da pele e a culpa é sua/nossa. Qualquer um lê no meu rosto como a sua distância presente me faz mal. Cada poro da minha pele exala frustração. E se isso não basta para enxergarem, minhas olheiras denunciam que há algo de errado. Como consegue dormir? Por mais que eu faça, não consigo. Passo a noite velando teu sono, vendo teu peito subir e descer. Me perguntando quando foi que começamos a nos distanciar, se é que realmente há um evento exato no tempo que inaugurou o início do nosso fim. Se foi quando eu arranhei o seu carro ou você o meu disco. O que foi que arranhou a nossa existência perfeita? Não, não estou exagerando. Nós éramos perfeitos. Ao menos você sempre foi pra mim.

Eu tenho uma ideia. Eu descarto meu orgulho, você o seu senso de justiça. Fiquemos bem. Vamos fingir que nada aconteceu. Você nunca gritou comigo, eu nunca te empurrei. Tudo isso não passou de um sonho ruim. Quando chegar, eu faço chá e um café fresquinho só pra você. Você me conta como foi seu dia e o quanto sentiu vontade de me ligar no meio da reunião pra contar como é hilário o Siqueira praticando seu “portunhol” com os sócios. E então você me beija e diz que está na hora de subirmos pro nosso quarto pra não dormirmos. Pra matar essa falta que eu estou de você. Ou pra levarmos o colchão pra sala, pedir pizza e ficarmos vendo filmes repetidos que nunca enjoamos.

Eu aceito a ideia. Você podia aceitar também. Nós somos passíveis de conserto. Porque temos muito a conviver e aprender um sobre o outro. Eu vou ver esse seu topete perder volume e você vai me ver perder certas curvas. E vamos nos amar ainda mais pra compensar essa perda. Comecemos de novo, nem precisa falar nada. Façamos um acordo calado. É só chegar e pegar o que ainda é seu e será por muito tempo.