quinta-feira, 21 de junho de 2012

anfetamina


Quando abriu os olhos era como se já não fosse ele quem estava ali. Definitivamente ele não existia mais. Sua existência agora consistia em duas partes distintas. Sua mente eram duas. Uma lutava ferozmente pela sobrevivência e seguia mandando impulsos elétricos por todo seu corpo a fim de manter seus órgãos funcionando. A outra parte, quase que indiferente  a todo esforço produzido pela primeira, vasculhava o hipocampo em busca de fragmentos de memória que pudessem explicar como chegara àquele leito frio e branco.

Vasopressina, noradrenalina. Por que todas essas reposições? Ruídos externos e por vezes ininteligíveis invadiam e confundiam seu raciocínio. Não raciocinava mais. Seu pensamento se limitava a repetir as mesmas perguntas. O que aconteceu? Como vim parar aqui? E como um fino feixe de luz na escuridão, lhe surge a primeira lembrança.

Um sorriso, um riso infantil. Bruno? Sim, é o rosto de meu filho que me aparece gradativamente e minha ex-esposa segura sua mão. Mas por que Ana não está sorrindo? Tem as feições pesadas de preocupação.

- O que há, Ana?
- Não vá.
Acorde. Acorde!

Repentinamente volta a sala alva. Quem são todas essas cabeças que se projetam pela lateral da cama? Percorre o olhar por cada centímetro que lhe é possível observar. Tenta balbuciar palavras, dúvidas. Mas não o respondem, talvez sequer o ouçam. E essa dor que lhe assalta o peito agora?

-Desfibrilador, 17 bits. Alguém grita.

Agora é a voz de Ana que ouve. Está pedindo para que não viaje na caminhonete:

- Por que não? Qual o problema em viajar com ela?
- É muito velha. E além disso, acordei com aquele aperto no peito.
- Ana, fique tranquila. Não há com o que se preocupar.
- Não posso. Sabe que não consigo me acalmar quando tenho estes maus pressentimentos.
- Sim, eu sei. Sei também que nunca aconteceu nada, lembra?
- Nada tão grave você quer dizer. Ao menos fez a revisão?
- Fiz. E também viajei há pouco tempo com ela e estava perfeita. Além do mais, são pouquíssimos quilômetros até lá.
- Não sei. Viajar de noite assim... Prefiro que não vá. Mas sei que não posso te impedir, então, por favor, cuide do nosso filho.
- Pare de pensar negativo! Te telefono no caminho e assim que chegarmos, ok?

Sentiu os 17 bits de impulsos elétricos atravessarem seu corpo. Não saberia dizer qual dor era pior. Sentiu a realidade aproximar-se novamente. Podia sentir o líquido gelado da medicação subir por suas veias. Sentia-se amarrado, sufocado por todos aqueles fios que sustentavam seu pulso de vida. Todos aqueles rostos acima dele tinham os mesmos ares de preocupação do de Ana.

Achou bom tê-la visto de novo. Tê-la visto sorrir passando as instruções de bom comportamento para o garoto enquanto ele guardava a mochila do Ben10 na cabine. Sorriso esse que Bruno herdara e ele observara ao vê-lo falando ao celular com a mãe, instantes antes de pegarem a estrada estreita.

- Aumente a potência.

Maldita dor. Mas espere. Se eu estou aqui onde está meu filho? O que houve com ele? Por favor, que ele esteja bem... Onde ele está? Preciso vê-lo!

- Aumento elevado da frequência cardíaca.
- Ministre ivabradina.

Onde está meu filho? Onde?? Bruno?! Bruno!!

Olhou em volta. Ali estava ele, a seu lado. Pousou sua pequena mão na dele, sorrindo.

- Funções normalizadas.

 Como é bom te ver, Pequeno. Ainda mais assim, estando com a expressão tão tranquila. Serena, eu diria. Mas por que essa estranha roupa branca?

- Verifique a dilatação de pupila.

Outro feixe de luz.

Luz? Faróis! Os faróis de uma carreta que vem em zigue zague na estrada. Em nossa direção! Deus! O que ele está fazendo aqui?? Veículos grandes não podem pegar esse caminho! Quanto tempo até a colisão? Preciso tirar Bruno do carro. Saia, Bruno, saia. Solte o cinto! Por que o fecho não abre?? Por quê?!?!

Subitamente tudo se tornou claro. A música que ouviam no rádio do carro, o motorista de caminhão dopado, os planos para o final de semana e como sempre negligenciava os cintos de segurança na revisão. Lembrou-se que a vida que se passou diante de seus olhos não foi a dele, mas a de Bruno. Do seu Pequeno. Seu maior motivo de alegria desde aquele dia chuvoso na maternidade. Agora lembrava quem é, o que acontecera, o que fizera. E daria tudo o que tinha para esquecer novamente.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

cowboy


- Acordei com uma vontade louca de fumar. Beber uísque com gelo. Acabar com o maço em uma hora. O curioso é que parei de fumar a dois anos e três meses. Me lembro bem a data porque coisas assim a gente lembra. Coisas que fazem as pessoas sorrirem e aprovarem nossos atos.
“Acho que vou secar a garrafa. Já tem um tempão que ela ta aí, guardada. Comprei pra afogar as mágoas, mas desisti. Achei que não valesse a pena, que era pouca lama pra uma bebida cara.”
“Mas agora eu tomo, a esvazio por mim. Engolir até meu organismo rejeitar o destilado e pôr pra fora o álcool e a nicotina que forcei fazerem parte dele. E que o vômito leve junto todas as impurezas do meu corpo. Com a dor de cabeça eu me entendo depois.”
“Sei lá, acho que no fim não sou eu, nem os cigarros, nem o uísque. É você. No fim é sempre você, não é?”

sexta-feira, 8 de junho de 2012

abraço


Na avenida principal ela o viu, dobrando a outra esquina do quarteirão. Um andando em direção ao outro. E ao fitar seus olhos agora, como há tempos não fazia, ela sentiu ressurgir dentro de si a vontade de abraçá-lo. E reviu toda a alegria que teve a seu lado. E a saudade que já tinha foi crescendo, apertando no peito. Viu que sentia falta. Viu que a atenção dele, e voz, faziam uma falta danada. Sentiu doer de novo. Quase tanto quanto tinha doído quando resolveram pôr um fim. Sentiu o impulso de cessar a dor dando-o o abraço mais apertado e sincero que jamais dera. Mas o conteve. Impulso contido por sua insegurança, por aquele seu medo de ser feliz. Porque, pra ela, após a calmaria vem a tormenta.Então deixou pra lá. Se convenceu de que estava bem, ou que iria ficar. Fez um aceno de cabeça pra ele e atravessou a rua. E ele, ao vê-la se afastando, prometeu pra si mesmo de novo que da próxima vez falaria, que da próxima vez correria e contaria o quanto ainda pensa nela. E a abraçaria de tal modo que mesmo quando a soltasse, não se desvencilhasse mais dele. E não fosse mais embora como agora. Nunca mais.