Iluminado apenas pelo abajur, estava sentado ao lado da cama. Uma poltrona cor de rosa, feita pra alguém com pernas bem mais curtas que as
dele, ornava com todo o resto da decoração. Enquanto observava a filha dormir,
lembrava-se de si mesmo em roupas respingadas de tinta Pink, caprichosamente
preparando o quarto para a chegada da primogênita. Já eram passados cinco anos
agora e o amor por aquele pedaço de gente só havia aumentado ainda mais.
Ela tinha muito da mãe. A começar
pelos olhos, cor de mel, altivos e curiosos. O tipo de criança que, se não
mostrar a ela como funciona, vai descobrir por si mesma, e que, depois de
desvendado o mistério, desinteressa-se logo e procura por algo mais desafiador.
Nunca quebrara um brinquedo, mas também jamais brincara com um por mais de uma
semana. Afinal, tinha uma casa e quintal inteiros para explorar.
Quem a via assim, longe em sonhos,
não imaginava quão esperta e sensível era. Já havia percebido, antes mesmo
dele, a mudança no comportamento da mãe. “Mamãe está cheirosa” , dizia, “Mamãe
está bonita”. Chegou mesmo a se queixar ao pai uma vez “Mamãe não brinca mais
muito comigo”. Talvez, se a tivesse ouvido, suas roupas não estariam manchadas
de sangue agora. Talvez não tivesse deixado chegar a esse ponto e então doeria
menos. Talvez.
Quando decidiu procurar um
detetive para investigar a esposa não estava certo se era o que devia fazer.
Não poderia pedir o conselho de um amigo, esse não é o tipo de coisa que se
conta a alguém. Não queria ter a confirmação de suas suspeitas, mas não conseguia
mais conviver com a dúvida. Então foi até o escritório no centro da cidade e
pagou pelo serviço sujo e eficiente. Não demorou pra que tivesse em mãos as
provas da infidelidade da mulher que amava. Naquele dia não voltou pra casa e
no dia seguinte não foi trabalhar.
Ao chegar, mais tarde que o habitual,
a mulher estava na cozinha guardando as sobras do jantar. Ele pegou uma garrafa
d’água na geladeira sem ser indagado pelo atraso ou por suas roupas serem as
mesmas do dia anterior. Ela não se importava. Perguntou como tinha sido o dia
dela, que definiu como cansativo e disse que já ia subir para dormir. Estava
sempre cansada agora.
Ele perguntou onde tinha ido. Ela
mentiu. Mesmo que tivesse dito a verdade, não acreditaria em nada que saísse de
sua boca. Perguntou o que costumava fazer na semana. Ela foi superficial,
parecia mais distante que nunca. Ele disse o nome do amante e perguntou de onde
o conhecia. Ela disse não saber daquele nome. Perguntou o porquê da traição.
Ela negou e disse que o amava. Ele deitou as fotos prova em cima do balcão. Ela
emudeceu.
A casa estava quieta. Só se podia
ouvir a respiração dos dois, de pé na cozinha. Ambos ofegantes. Ele observava a
esposa. Estava linda como sempre fora. Ainda magra, vestida com camisa e uma saia
justa um pouco acima dos joelhos. Cabelos presos, maquiagem leve. Ela tinha um
ar jovial que a maternidade não levou. Sem dúvida uma mulher atraente. Pôs-se a
imaginar as mãos de outro acariciando aquelas pernas, entrelaçando os dedos por
entre os cabelos da nuca e a beijando os lábios com desejo. Imaginou-a gostando
disso. Suspirando e sussurrando um nome que não o dele. Roçando a pele desnuda
e cravando as unhas em êxtase nas costas de outro homem.
Ele ouvia pensamentos e ruídos dentro de sua cabeça. Todos rápidos, simultâneos e ininteligíveis. Podia sentir todo o corpo vibrar em ira, como jamais antes. Era como se pudesse sentir o sangue correr e ebulir dentro de suas veias. E contrastando com toda a algazarra dentro dele, ela seguia muda. E sua inércia e palidez o enfureciam ainda mais.
Estendeu o braço a fim de
alcançar o faqueiro em cima do balcão. Viu-a recuar e desculpar-se repetidas
vezes, dando para trás cada passo que ele dava para frente. Implorando seu
perdão. Ao parar num canto do cômodo, ainda não conseguia ver arrependimento em
seus olhos. Era apenas medo. Como um animal pequeno, acuado pelo predador, com a
feição em desespero. Nada que o impedisse de empunhar a faca e dar o primeiro golpe,
perfurando-lhe a barriga sem resistência, enquanto ouvi-a soltar um grito de
dor. Nos cinco golpes seguintes não ouviu ou sentiu nada. Quando parou, notou a
manga da camisa, outrora branca, vermelha, embebida em sangue.
Notou que a filha estava
encolhida na cama. Levantou-se, atravessou o quarto e pegou mais uma coberta na
parte de cima do guarda-roupa. Voltou, cobriu-a e sorriu enquanto lhe
acariciava os cabelos escuros, como os dele. Estava de fato mais frio que o costumeiro
aquela noite, mas ele estranhamente não sentia ou não se incomodava com isso.
Estava anestesiado. Recordou o dia em que trouxe as mulheres de sua vida da
maternidade. Como todos os descreviam como uma família radiante. Todo o
primeiro mês foi um entra e sai de pessoas da casa. Parentes e amigos com
presentes e tudo que pais de primeira viagem precisam para sobreviver àquela
experiência.
E o que todas aquelas pessoas diriam
se pudessem vê-los agora? Uma série de acusações e discursos moralistas os
aguardava. Apontariam para sua garotinha e a olhariam com pena. Mais tarde, lhe
encheriam a cabeça com julgamentos sobre seus pais e como ela deveria deixar de
amá-los. Plantariam o ódio e a revolta na garota que hoje é tão doce aos olhos
do pai. Não poderia confiar ou entregá-la a quem não saberia como agir. Então
de súbito, soube o que fazer. Sentou-se na beirada da cama, sorrateiramente
para não acordá-la, e beijou-lhe a testa em despedida. Pegou um dos
travesseiros que ali estavam e pressionou-o contra o rosto da filha. O manteve
assim, impedindo sua respiração, e apertando-lhe o peito para que não se
debatesse tanto. Talvez tenha ouvido a menina gritar o pai por socorro uma vez,
não tinha certeza.
Feito, ajeitou a garota na cama e
cobriu-a de novo, como se repousasse. Apagou o abajur, deixou o quarto e
fechou a porta. Percorreu lentamente o corredor até o quarto do casal. Entrou, acendeu as
luzes e trancou a porta. Caminhou até o banheiro e parou em frente a pia,
encarando-se no espelho. Estava exausto. Parecia vinte anos mais velho. As
rugas estavam mais marcadas, os olhos injetados e o rosto escurecido pela barba
por fazer. Abriu o armário, pegou a navalha e testou o fio de corte no polegar.
Estava bem afiado. Fechou a porta do armário, olhou fixamente para o espelho, elevou
ligeiramente o queixo e passou a lâmina num corte horizontal fundo e preciso no
pescoço. Enquanto agonizava, caído no chão de mármore, pensou consigo mesmo
satisfeito: está tudo bem agora.
Excelente conto :3 Gosto de jeito que você escreve com períodos curtos e mesmo assim não dá a impressão de quebra do texto. Sempre de parabéns :D
ResponderExcluirMuito bom! Gosto de histórias desse tipo, com essa temática e essa quantidade de detalhes!
ResponderExcluirParabéns!
Que conto intenso! Percorreu um intrigante caminho entre a felicidade de uma nova vida e a necessidade de uma trágica despedida.
ResponderExcluir