quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Chaira

Iluminado apenas pelo abajur, estava sentado ao lado da cama. Uma poltrona cor de rosa, feita pra alguém com pernas bem mais curtas que as dele, ornava com todo o resto da decoração. Enquanto observava a filha dormir, lembrava-se de si mesmo em roupas respingadas de tinta Pink, caprichosamente preparando o quarto para a chegada da primogênita. Já eram passados cinco anos agora e o amor por aquele pedaço de gente só havia aumentado ainda mais.

Ela tinha muito da mãe. A começar pelos olhos, cor de mel, altivos e curiosos. O tipo de criança que, se não mostrar a ela como funciona, vai descobrir por si mesma, e que, depois de desvendado o mistério, desinteressa-se logo e procura por algo mais desafiador. Nunca quebrara um brinquedo, mas também jamais brincara com um por mais de uma semana. Afinal, tinha uma casa e quintal inteiros para explorar.

Quem a via assim, longe em sonhos, não imaginava quão esperta e sensível era. Já havia percebido, antes mesmo dele, a mudança no comportamento da mãe. “Mamãe está cheirosa” , dizia, “Mamãe está bonita”. Chegou mesmo a se queixar ao pai uma vez “Mamãe não brinca mais muito comigo”. Talvez, se a tivesse ouvido, suas roupas não estariam manchadas de sangue agora. Talvez não tivesse deixado chegar a esse ponto e então doeria menos. Talvez.


Quando decidiu procurar um detetive para investigar a esposa não estava certo se era o que devia fazer. Não poderia pedir o conselho de um amigo, esse não é o tipo de coisa que se conta a alguém. Não queria ter a confirmação de suas suspeitas, mas não conseguia mais conviver com a dúvida. Então foi até o escritório no centro da cidade e pagou pelo serviço sujo e eficiente. Não demorou pra que tivesse em mãos as provas da infidelidade da mulher que amava. Naquele dia não voltou pra casa e no dia seguinte não foi trabalhar.

Ao chegar, mais tarde que o habitual, a mulher estava na cozinha guardando as sobras do jantar. Ele pegou uma garrafa d’água na geladeira sem ser indagado pelo atraso ou por suas roupas serem as mesmas do dia anterior. Ela não se importava. Perguntou como tinha sido o dia dela, que definiu como cansativo e disse que já ia subir para dormir. Estava sempre cansada agora.

Ele perguntou onde tinha ido. Ela mentiu. Mesmo que tivesse dito a verdade, não acreditaria em nada que saísse de sua boca. Perguntou o que costumava fazer na semana. Ela foi superficial, parecia mais distante que nunca. Ele disse o nome do amante e perguntou de onde o conhecia. Ela disse não saber daquele nome. Perguntou o porquê da traição. Ela negou e disse que o amava. Ele deitou as fotos prova em cima do balcão. Ela emudeceu.

A casa estava quieta. Só se podia ouvir a respiração dos dois, de pé na cozinha. Ambos ofegantes. Ele observava a esposa. Estava linda como sempre fora. Ainda magra, vestida com camisa e uma saia justa um pouco acima dos joelhos. Cabelos presos, maquiagem leve. Ela tinha um ar jovial que a maternidade não levou. Sem dúvida uma mulher atraente. Pôs-se a imaginar as mãos de outro acariciando aquelas pernas, entrelaçando os dedos por entre os cabelos da nuca e a beijando os lábios com desejo. Imaginou-a gostando disso. Suspirando e sussurrando um nome que não o dele. Roçando a pele desnuda e cravando as unhas em êxtase nas costas de outro homem.

Ele ouvia pensamentos e ruídos dentro de sua cabeça. Todos rápidos, simultâneos e ininteligíveis. Podia sentir todo o corpo vibrar em ira, como jamais antes. Era como se pudesse sentir o sangue correr e ebulir dentro de suas veias. E contrastando com toda a algazarra dentro dele, ela seguia muda. E sua inércia e palidez o enfureciam ainda mais.

Estendeu o braço a fim de alcançar o faqueiro em cima do balcão. Viu-a recuar e desculpar-se repetidas vezes, dando para trás cada passo que ele dava para frente. Implorando seu perdão. Ao parar num canto do cômodo, ainda não conseguia ver arrependimento em seus olhos. Era apenas medo. Como um animal pequeno, acuado pelo predador, com a feição em desespero. Nada que o impedisse de empunhar a faca e dar o primeiro golpe, perfurando-lhe a barriga sem resistência, enquanto ouvi-a soltar um grito de dor. Nos cinco golpes seguintes não ouviu ou sentiu nada. Quando parou, notou a manga da camisa, outrora branca, vermelha, embebida em sangue.


Notou que a filha estava encolhida na cama. Levantou-se, atravessou o quarto e pegou mais uma coberta na parte de cima do guarda-roupa. Voltou, cobriu-a e sorriu enquanto lhe acariciava os cabelos escuros, como os dele. Estava de fato mais frio que o costumeiro aquela noite, mas ele estranhamente não sentia ou não se incomodava com isso. Estava anestesiado. Recordou o dia em que trouxe as mulheres de sua vida da maternidade. Como todos os descreviam como uma família radiante. Todo o primeiro mês foi um entra e sai de pessoas da casa. Parentes e amigos com presentes e tudo que pais de primeira viagem precisam para sobreviver àquela experiência.

E o que todas aquelas pessoas diriam se pudessem vê-los agora? Uma série de acusações e discursos moralistas os aguardava. Apontariam para sua garotinha e a olhariam com pena. Mais tarde, lhe encheriam a cabeça com julgamentos sobre seus pais e como ela deveria deixar de amá-los. Plantariam o ódio e a revolta na garota que hoje é tão doce aos olhos do pai. Não poderia confiar ou entregá-la a quem não saberia como agir. Então de súbito, soube o que fazer. Sentou-se na beirada da cama, sorrateiramente para não acordá-la, e beijou-lhe a testa em despedida. Pegou um dos travesseiros que ali estavam e pressionou-o contra o rosto da filha. O manteve assim, impedindo sua respiração, e apertando-lhe o peito para que não se debatesse tanto. Talvez tenha ouvido a menina gritar o pai por socorro uma vez, não tinha certeza.

Feito, ajeitou a garota na cama e cobriu-a de novo, como se repousasse. Apagou o abajur, deixou o quarto e fechou a porta. Percorreu lentamente o corredor até o quarto do casal. Entrou, acendeu as luzes e trancou a porta. Caminhou até o banheiro e parou em frente a pia, encarando-se no espelho. Estava exausto. Parecia vinte anos mais velho. As rugas estavam mais marcadas, os olhos injetados e o rosto escurecido pela barba por fazer. Abriu o armário, pegou a navalha e testou o fio de corte no polegar. Estava bem afiado. Fechou a porta do armário, olhou fixamente para o espelho, elevou ligeiramente o queixo e passou a lâmina num corte horizontal fundo e preciso no pescoço. Enquanto agonizava, caído no chão de mármore, pensou consigo mesmo satisfeito: está tudo bem agora.


quarta-feira, 9 de outubro de 2013

O que preciso dizer

Qualquer coisa entre morrer e estar vivo, é como me sinto. Você vai chamar de clichê ou subjugar minha dor, eu sei como é. Aliás, você sabe bem como é. Você tem seu jeito de entrar na vida das pessoas, fazê-las gostarem de ti e depois abandoná-las sem mais nem menos. Depois, considera todos amantes do drama, fracos e exagerados. Mas você não é muito melhor que qualquer um desses.

Vive seus dias se fazendo de forte, se achando a dona da razão e sob controle das próprias emoções. Só que se esquece de que ninguém manda no coração. Pra se encaixar no seu modo de ver as coisas, você não pode controlar a reação do seu cérebro frente a estímulos externos. Se os cientistas conhecem pouquíssimo do funcionamento de toda essa massa cinzenta aí dentro, por que acha que justo você teria aprendido, com a pouca idade que tem, a manipular todas as respostas da sua?

Talvez doa saber, mas você não é Deus. Não ache que simplesmente por dizer algumas palavras as coisas irão mudar, que o que eu sinto por você vai mudar. Sentimentos são mais complexos que isso. Não podemos desligar e ligar de novo quando for mais conveniente. Quisera eu que fosse assim, daí não precisaríamos passar por isso. Deus, como eu queria poder religar o que sentia por mim.


Você não tem noção de como tenho pensado em você nesses dias. Mesmo não tendo nada físico seu pra guardar, você me assombra. E o que me assusta mais é que eu gosto disso. Eu não quero deixar de pensar em você, não quero te esquecer. Não quero que sua lembrança vá embora como se nunca tivéssemos nos conhecido. Eu não quero perder o que ainda tenho de você. Eu quero ter mais. Eu prefiro viver sabendo que tive você e perdi, do que nunca ter tido você comigo. Mesmo que isso nunca mais se repita, preciso lembrar que um dia fui a razão do seu sorriso.

O que tenho pra dizer mesmo é que tudo que eu mais quero agora é estar com você. E, se você sente ao menos um pouco a minha falta, se em alguma hora do seu dia se lembra do tempo que passamos juntos e se sente bem com isso, me deixe mostrar que posso fazer bem melhor. Sei que não posso fazer você me amar, mas eu sei que posso te fazer feliz. Então me deixe pelo menos tentar. Não haverá um só dia em que não estarei feliz por estar contigo e que eu não me esforce pra te fazer sentir o mesmo. Não me deixe com o peso de saber o que poderia ter sido e não tê-lo vivido.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Carta aberta à amiga que um dia existiu

Por onde será que tem andado? Que rumos sua vida levou? Se vive com os pais ainda na mesma casa, ou casou-se e teve uma filha. Pensei ter te visto há algumas semanas, sentada no último banco da condução. Devia ser mesmo você. Quando passei a catraca e te vi, também olhando pra mim, estremeci surpresa. Susto acho que é a palavra mais adequada.

Faz anos desde a última vez, mas não gosto de me lembrar dela. Se quer saber, gosto de lembrar como éramos antes de toda aquela confusão. Quando nos conhecemos e éramos as mais inteligentes da classe. Sempre queridas pelos professores e com as melhores notas de provas e trabalhos. Você sempre foi mais aplicada, eu tinha sorte. Você ganhava a medalha de melhor aluna, e eu o respeito dos colegas.

Gosto de lembrar-me como, mesmo em escolas diferentes, nos encontrávamos ao menos uma vez por semana pra nos colocar a par dos acontecimentos: o primeiro beijo, o primeiro amor, as descobertas que vinham com isso. Você sempre parecia reluzente ao me contar suas histórias e empolgada em ouvir as minhas. Minhas aventuras de final de semana. Você costumava rir e me rotular de malvada por esnobar uns garotos. Passávamos horas assim.

Trocamos livros, presentes, segredos. Tínhamos até o projeto de morarmos “sozinhas juntas” um dia. Ficávamos mirabolando os futuros dias cheios e divertidos que teríamos na nossa casa. Desde festas às sextas-feiras a namorados passando a noite. O carro que dividiríamos e a carona que daríamos a todos os amigos a caminho da balada. Ia ser incrível e eu mal podia esperar pra viver tudo aquilo, mas sequer chegamos perto.

Eu não sei o que pode ter acontecido e te levado a agir daquela forma comigo. O que, de tão grave, te fez esquecer ou passar por cima de nossa cumplicidade a ponto de me magoar tanto.  Ouvi diversas teorias a respeito, acredite, de parentes e amigos. Especulavam ciúme, inveja, até loucura (e essa era a mais repetida). Eu as ouvia, ponderava e concordava com algumas de tão machucada que estava. Mas no meu íntimo, ainda hoje, renego todas elas. Não consigo acreditar que você seja uma pessoa má.

Quis te dizer isso aquele dia no ônibus. Naqueles segundos que fiquei de pé, observando que não mudara quase nada nesses anos, a não ser por parecer mais madura – e triste. Quis te dizer que não guardo ressentimento ou rancor algum sobre o que passou. Te dar um abraço e perguntar se estava bem. Não queria saber mais seus motivos, já te desculpei há muito tempo, mas queria te ouvir pedir desculpas pra acabarmos logo com tudo isso.

Quis e pensei em fazer tanta coisa e nada fiz. Limitei-me a sentar num dos bancos da frente e relembrar, assustada demais pra andar até o fim do corredor.  Quando enfim tomei coragem para olhar pra trás, você já havia saltado e levado consigo minha esperança de resolução. Fiquei desapontada por um momento e aliviada em seguida. Está bem assim. Tive uma amizade, aprendi muito com ela e vou guardá-la para sempre comigo. Tive a oportunidade de ver que está seguindo sua vida e vou fazer exatamente o mesmo.


Felicidades, de sua amiga de Vicente Amato.